sábado, 26 de março de 2011

A arte como simbolização do mundo

Dor da palavra
"O que seria da minha palavra 
se minha dor nela não habitasse?
O que seria da minha dor 
se não encontrasse palavra 
que a expressasse?"


Na Grécia antiga a arte dramática era encenada nos teatros de arena, propondo certa catarse naquele que assistia. Um golpe no narcisismo do espectador. Como em uma ab-reação que alertasse a platéia, de qualidades da realidade, que no cotidiano pudessem ser de alguma forma ignoradas, ou mesmo perdidas nas tarefas repetitivas do dia a dia.
Um bom início na empreitada de estudarmos a arte enquanto símbolo de mundo, talvez seja pelo vértice epistemológico, onde o intuito é criar ferramenta que nos possibilite o discernimento entre crença e conhecimento.
Immanuel Kant (1724-1804)
Um exercício no questionamento daquilo que Immanuel Kant (1724-1804) chama de conhecimento a priori, onde propõe que a "coisa em si" é icognicivel. Se pudermos incluir dentre essas perspectivas de estudo do saber a partir das ideias de Kant, o vértice das 'possibilidades' passa a ser o instrumento principal na busca pelo conhecimento. O ponto de partida da filosofia de Kant é justamente o problema do conhecimento, e a ciência, tal como existe.

Esse importante filósofo alemão propõe duas categorias básicas de conhecimento, o conhecimento a priore e o conhecimento a posteriori. Para esse importante pensador, o conhecimento a priori não depende da experiência, sendo assim, algo transmitido teoricamente. Esse padrão de conhecimento segue um modelo de saber acumulativo, que baseado em um fato registrada na memória e que foi percebida pelos órgãos dos sentidos. Então pode ser transmitido a outrem, como verdade.

No extremo oposto, estaria o conhecimento a posteriori, ou como Kant o denominava em alguns casos, o saber sintético. Nesse molde de saber estaria aquele conhecimento que seria resultam da experiência e, por isso, implicaria aspectos privados e incertos. Segundo esse modelo proposto por Kant, o conhecimento é vínculo, ou relacionamento entre o sujeito e o objeto do conhecimento.

Para Kant, são necessários os dois modelos de conhecimento e isso coincide com a nomeação (a priori) da experiência (a posteriori). A partir dessa proposta de pensamento, não se pode conhecer as coisas "em si", mas apenas o que podemos obter através da experiência com ela. Isso equivale dizer que aquilo que chamamos de coisa, é apenas aquilo que pudemos conhecer do objeto, e nunca a coisa “em si”.

Entretanto, é uma forma menos acessível e seleta do saber, pois é uma maneira de pensar que torna o sujeito responsável pelo saber. Certa pedagogia regida por esses moldes propostos por Kant, talvez fosse aquela calcada na priorização das possibilidades em se qualificar o sujeito para a experiência. Isso, para Kant, representaria a retirada do sujeito de sua menoridade, posição onde se encontra dependente do saber do outro. O ‘por si mesmo’ é a bandeira do saber kantiano, e seria talvez a única forma de ensino que poderia receber o titulo de real.

Qualquer outra tentativa de conhecimento colocaria o sujeito dependente da experiência do outro, invalidando grande parte do vínculo com a própria realidade do objeto do conhecimento. Não é muito difícil chegarmos a uma concepção onde uma verdade contada não pode ser comparada a uma verdade vivida. Segundo a proposta de Kant, fora da experiência não pode haver o real aprendizado.

Se assim procede; a realidade é mesmo inacessível e o que podemos obter é simplesmente breve impressão desta, então, que ao menos seja criado algo que possa amenizar a condição finita e desprotegida da existência. Algo que permita estar mais próximo possível da apreensão do real.


Sigmund Freud (1856-1939)
Como no material clássico de Sigmund Freud (1856-1939), “O Mal-Estar na Civilização”, onde em 1930 ilustra a tentativa de dar conta dessa angustia. O ser humano desenvolve instrumentos de representação, buscando na realidade aquilo que possa simbolizar as dores da alma.

Considerando três grandes modelos onde estejam compreendidos o cientifico - filosófico e o místico-religioso, a arte se enquadra na categoria dos padrões da epistemologia, enquanto dimensão estética. Certa área da mente rica em imaginação, logo, propícia à simbolização. O aparelho psíquico dispõe-se a certo estado se funcionamento do não-tempo e do não-espaço interior. Contudo, a arte proporciona assim, um encontro com o si-mesmo em áreas conflituosas da mente onde o vínculo com o mundo externo ainda se encontra num modelo muito primitivo.
Conceito de símbolo

OM
Um importante instrumento de reflexão da alma. Filosoficamente, contudo, de maneira prática, podemos chamar de símbolo tudo aquilo compreende a função de sustentar durante a ausência material. Num modelo cientifico - experimental, um time de futebol pode facilmente ser recordado através de um simples brasão, por exemplo. No misticismo encontramos amuletos e formas simbólicas que reúnem conceitos extremamente subjetivos, mas que ainda assim permitem-se estarem presente em uma pedra, ou um pedaço de madeira, quem sabe. O afeto dedicado às imagens sagradas é um aspecto muito característico de algumas religiões.

 Melanie Klein (1882-1960)
Do ponto de vista psicológico, o símbolo começa a ser estudado com maior atenção, a partir dos estudos de Melanie Klein (1882-1960), pensadora que talvez seja o nome mais importante para o pensamento psicanalítico depois de Freud. Em sua obra “Da importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego” (1930) a autora propõe que a capacidade de simbolizar o seio é o protótipo de vinculo que pendurará na vida emocional. A questão é “o que fica quando o seio não esta?” Desse ponto de vista, cada experiência simbólica com a realidade habilita o “eu” a viver a falta.

Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981) propõe uma tríade interessante onde real, imaginário e simbólico se sucedem. Esse pensador francês valoriza a linguagem enquanto aquilo que estrutura o inconsciente. Lacan usa do ‘nome do pai’ como símbolo da palavra.


Wilfred R. Bion (1897-1979)
Wilfred R. Bion (1897-1979), psicanalista inglês, nascido na Índia, propõe a capacidade de vivermos o “O” da experiência, representado nas religiões hindus pelo símbolo do 'om', onde o aparelho psíquico fica livre da satisfação sensorial, sendo sustentado justamente pelo símbolo. Assim, a falta do seio real é o que leva a pensar. Contudo, quando a falta que se sente é de um seio do qual se tem muito escassas as impressões afetivas, o ambiente se torna assustador e muito pouco fértil a simbolização.


A arte no simbolizar

Edipo de Moreau
O artista nos prova que a paisagem existe mesmo que não conheçamos a paisagem em-si, ou seja, nos reporta ao ambiente retratado, mesmo sem termos conhecido o ambiente real da paisagem. A Partir daí inicia-se certo processo. A realidade é percebida gerando a duvida, então, o imaginário é o que entra em funcionamento. Nesse ponto do processo (do imaginário), movimentos lúdicos são experimentados, sempre repletos de amor, ódio e consequentemente a fuga para o real. Dentro desta perspectiva Bion aprecia o espaço mental, tal como num processo de digestão daquilo que se obtém nas pesquisas feitas no mundo real. Assim, com a ajuda de um ambiente saudável, alguma hipóteses dentre aquelas ludicamente experimentadas, agora abre a possibilidade para a simbolização, através de um representante na realidade. Assim como no sonho também na arte, abre-se certo caminho nobre de acesso aos conteúdos inconsciente. Por funcionamento através da capacidade criativa, ilustram em sua representação os movimentos internos de fantasias.

Arte e o eu real

Con-fusão entre o eu e a arte
Em 1910 Freud publica “Leonardo Da Vinci e Uma Lembrança Da Sua Infância” e nessa importante obra analisa o artista através dos documentos de registro e também através de suas obras. Através de seu quadro ‘Sant’ Ana com Dois Outros’ analisa as duas mães fundidas num corpo só, formando um abutre com o manto que as envolve, ave sombria que aparecera num sonho de Leonardo di ser Piero da Vinci (1452-1519) colocando as penas de calda em sua boca. Essa questão é retomada em 1939 por Carl Gustav Jung (1875-1961), importante colaborador na construção do pensamento psicanalítico, em seu “O Espírito Na Arte e Na Ciência”, onde transcende o modelo cientifico propondo o vértice mitológico na analise. A arte de Da Vinci revela aspectos importantes de seus conflitos emocionais e verdades internas.

Donald Woods Winnicott 
(1979-1983)
De qualquer modo, o modelo estético-artistico apresenta dessa forma, como revelação do mundo do verdadeiro eu, ou nas palavras de Donald Woods Winnicott (1979-1983), pediatra e psicanalista pós-kleiniano, temos aqui uma possibilidade de contato com o verdadeiro self que vive nos quartos dos fundos do falso self, construindo a partir da necessidade de sermos desejados pelo outro, alinhavando a idéia em concordância com Lacan que propõe que “o homem é o desejo do outro”.

Arte e sublimação

Freud (1910, p. 72) propõe o conceito de sublimação como capacidade de substituição de objetivos imediatos por outros desprovidos do caráter sexual, através do aprimoramento e valorização das realizações. A arte não é só simples instrumento ilustrativo dos processos internos, ela tem a propriedade de conduzir o espectador a um “estado de espírito” muito próximo da vivencia emocional da qual experimentou o artista. O artista constrói um ambiente emocional que envolve aquele espectador aberto à linguagem artística usada. Quantas vezes não nos pegamos segurando um “nó na garganta” ao ouvirmos uma canção, sem sabermos explicar o porquê do sentimento de tristeza que habita nosso peito?

A arte nos permite viver nossa “memória sonho”, como propõe Walter Trinca (1997), onde a sensorialidade perde o valor. Não podemos provar cientificamente quantos metros existe entre a cerca e a casa pintadas na tela, mas ficamos satisfeitos ao contemplá-la. O espaço e o tempo são freqüentemente inutilizados. Na arte, existe a relação estética do “sempre” eternizada na obra. Dispensamos a coisa em si que nos propõe Kant e nos encantamos pela representação da qual nos diz Freud.

Referencias:
Bion, Wilfred, Ruprecht. Transformações - mudança do aprendizado ao crescimento. Rio de Janeiro, Imago, 1983, trad. C.H.P. Affonso, M.R.A. Junqueira, L.C.U. Junqueira Fo.

(1970) Atenção e interpretação. Rio de Janeiro, Imago, 1973.

(1992). Cogitations. (Edited by F. Bion). London: Karnac Books.

Freud, S. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas - Edição Standard Brasileira, IMAGO (1969-80)

Jung, C. Espírito Na Arte e Na Ciência, Petrópolis, Vozes, 1939.

KLEIN, Melanie, (1930) A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego. in Contribuições à psicanálise. São Paulo, Mestre Jou, 1981.

Trinca, W. O espaço do homem novo. São Paulo, Papirus, 1997.

WINNICOTT, Donald, Da pediatria à psicanálise. São Paulo, Francisco Alves, 1982.

O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1983.

Prof. Renato Dias Martino
Psicoterapeuta e Escritor
Fone: 17-30113866
renatodmartino@ig.com.br
http://pensar-seasi-mesmo.blogspot.com/

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