sexta-feira, 27 de novembro de 2015

NOTA AOS PSICOTERAPEUTAS

Até que ponto um suposto psicoterapeuta poderia ajudar seu paciente com suas angústias e ansiedades, sem que antes, este que ora se dispõe como analista tenha reconhecido em si mesmo sua própria dor psíquica? A proposta de se pensar a ética na questão da manutenção emocional do candidato ou mesmo do profissional que atua na saúde mental é uma tarefa difícil, tanto mais é a expansão do questionamento no âmbito que abrange não só essa categoria profissional, mas a que compreende todo aquele que trabalhe diretamente com o publico e por que não aquele em que o contato não é tão direto, mas que ainda assim, de alguma forma, recebe e exerce alguma influência.
E logo de início formula-se uma questão: Quem escaparia dessa demanda?

Claro, que guardando aqui as proporções que mostra a ineficiência da psicanálise naquele que não se dispõe dedicar-se ao trabalho analítico. Isso pois, o autor que aqui escreve não apresenta crédito algum quanto à aplicabilidade da psicanálise em alguém que não apresente o mínimo de iniciativa própria para isso. Essa iniciativa, por sua vez, deve ter sido determinada pela percepção da dor e da desorganização interna que obstruem a capacidade de pensar.
Tendo compreendido aqui a dificuldade na abordagem desse assunto, seria prudente não nos pouparmos da paciência em analisarmos cada elemento que nos apareça pela frente, não nos privando de dedicarmos a cada um deles o cuidado necessário, assim como deve ocorrer no trabalho psicoterapêutico. 


Independente da profissão exercida, a tarefa de 'conhecer-se e reconhecer-se a si mesmo' é uma procura de cada um de nós no exercício da existência. Na busca por recursos que possam servira para cuidar da expansão maturidade emocional, dedicar-se à análise pessoal, constitui um interessante exercício dessa empreitada. Mas no caso daquele que se propõe estar na posição de profissional da saúde mental, ou seja, os da área “psi”, isso fica de certa forma muito mais sério, pois repousa aí questões inerentes a ética profissional na qualidade do serviço prestado. 


Através da pesquisa teórica, assim como nas experiências práticas dos temas que circundam o assunto abordado aqui, é possível perceber que por mais interessante aos olhos da alma, que possa parecer essa proposta de nos reconhecermos a nós mesmos, existem importantes opiniões contrárias ao assunto. Encontramos diferentes juízos sobre esse contexto, que vão desde uma atitude muito banal presente no cidadão comum, que apesar de extremamente arrogante, ainda assim amiúde ouvimos: “já me conheço o suficiente”, até pensamentos de importantes autores da literatura mundial, como é o caso de André Paul Guillaume Gide (1869 - 1951), escritor francês vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1947.
André Gide (1869 - 1951)
Em suas palavras:

"Conhece-te a ti mesmo. Máxima tão perniciosa quanto feia. Qualquer pessoa que se observe cessa o seu próprio desenvolvimento. A lagarta que tentasse 'conhecer-se bem' jamais se tornaria uma borboleta." GIDE (1984)


A grande coleção de opiniões é fator que agrava a dificuldade em tratarmos do assunto. Já que abre-se certa corrente de pensamento que descarta qualquer esforço no intuito de reconhecer a si mesmo para oferecer atendimento psicológico ao outro.


De qualquer forma, se aqui estamos nos propondo cogitar sobre a análise da personalidade daquele que escolheu essa difícil tarefa que é ser psicoterapeuta, devemos incluir a “dor psíquica” como condição para o aspirante dessa função. É muito pouco provável que aconteça uma dedicação a um processo de psicoterapia, que não seja guiado pela busca de reconhecer certa dor psíquica e como discutiremos à frente, um sofrimento reconhecido que esteja movendo a procura por partes de si mesmo por meio do encontro com o outro.
Portanto, a percepção do sofrimento psíquico em si mesmo, deve ser fator indispensável para aquele que pretende desempenhar a psicoterapia, tanto na posição de paciente quanto na posição de analista.
De outra forma, esse analista não poderá receber, se importar e assim, tentar conter a dor daquele que o procura solicitando ajuda. Uma vez que, quem nunca se viu desamparado não poderá acolher o outro em seu desamparo.
Bem, até esse ponto do ensaio já fica bem evidente a necessidade de certo preparo enquanto cuidado com o funcionamento emocional, já que aquilo que o psicoterapeuta se propõe procurar junto ao paciente é justamente o que ele (paciente) mais teme. Partes do eu que estão impedidas de serem reconhecidas como tal e então serem pensadas, mas que quando surgem o impele em direção à ação.


Sigmund Freud (1856-1939)
Por mais limitada e muitas vezes inviável a manutenção do funcionamento emocional da classe profissional "psi", a psicanálise, desde muito cedo cria essa condição e já em 1912, Sigmund Freud (1856-1939) publica suas “Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise” trazendo conteúdos dos quais ainda hoje são de extrema utilidade, não só para o psicanalista, mas para todo profissional que pretenda trabalhar com ética. 


Sigmund Freud (1856-1939)
“Há alguns anos, dei como resposta à pergunta de como alguém se pode tornar analista: ‘Pela análise dos próprios sonhos’ Esta preparação, fora de dúvida, é suficiente para muitas pessoas, mas não para todos que desejam aprender análise. Nem pode todo mundo conseguir interpretar seus próprios sonhos sem auxílio externo. Enumero como um dos muitos méritos da escola de análise de Zurique terem eles dado ênfase aumentada a este requisito, e terem-no corporificado na exigência de que todos que desejem efetuar análise em outras pessoas terão primeiramente de ser analisados por alguém com conhecimento técnico." Freud (1912-p.55-56).

Freud nos orienta com grande propriedade sobre a necessidade de dedicar-se a análise pessoal num encontro com a verdade do outro como fator fundamental na formação daquele que busca se tornar psicanalista. Na realidade, Freud reconhecia o valor da análise pessoal como requisito primordial, sendo qualquer outra preparação uma extensão desse processo.
"Todo aquele que tome o trabalho a sério deve escolher este curso, que oferece mais de uma vantagem; o sacrifício que implica revelar-se a outra pessoa, sem ser levado a isso pela doença, é amplamente recompensado. Não apenas o objetivo de aprender a saber o que se acha oculto na própria mente é muito mais rapidamente atingido, e com menos dispêndio de afeto, mas obter-se-ão, em relação a si próprio, impressões e convicções que em vão seriam buscadas no estudo de livro e na assistência a palestras. E, por fim, não devemos subestimar a vantagem que deriva do contato mental duradouro que, via de regra, se estabelece entre o estudioso e seu guia.
Uma análise como esta, de alguém praticamente sadio, permanecerá incompleta, como se pode imaginar. Todo aquele que possa apreciar o alto valor do autoconhecimento e aumento de autocontrole assim adquiridos continuará, quando ela terminar, o exame analítico de sua personalidade sob a forma de auto-análise, e ficará contente em compreender que, tanto dentro de si quanto no mundo externo, deve sempre esperar descobrir algo de novo. Mas quem não se tiver dignado tomar a precaução de ser analisado não só será punido por ser incapaz de aprender um pouco mais em relação a seus pacientes, mas correrá também perigo mais sério, que pode se tornar perigo também para os outros. Cairá facilmente na tentação de projetar para fora algumas das peculiaridades de sua própria personalidade, que indistintamente percebeu, no campo da ciência, como uma teoria de validade universal; levará o método psicanalítico ao descrédito e desencaminhará os inexperientes.” Freud (1912-p.55-56)


Paula Heimann (1899-1982)
Apesar de não ser intuito deste trabalho, o de aprofundar-se nos conceitos psicanalíticos, seria importante lembrarmos aqui de um dos pilares que sustentam a teoria da psicanálise. A transferência que um dia surgiu como obstáculo, mas que mais tarde se tornaria o principal instrumento no manejo da prática clínica. Estudar a transferência é a aprender sobre um fenômeno mental que ocorre em qualquer que seja a relação ou vínculo humano, mas que na situação da psicanálise, pronuncia-se de forma especial. Analisar a experiência da transferência é também envolver-se, mesmo sem que se perceba, com a contratransferência. Foi a partir dos estudos sobre a transferência que iniciou-se o desenvolvimento do termo contratransferência. Mesmo antes de atentar-se de forma atida para a ocorrência de certo fenômeno e assim estudá-los efetivamente, Freud já descrevia em 1912, sobre aquilo que posteriormente ganharia o nome de contratransferência. O termo seria mais bem estudado por pensadores da psicanálise posteriores ao Freud. 
Heinrich Racker (1910-1961)
Foi a partir de estudos de Paula Heimann (1899-1982) e Heinrich Racker (1910-1961), que o termo passou a ser visto com mais atenção e assim, ser descrito como conceito psicanalítico. Sob essa nova idéia, a posição fria que o analista pudesse ocupar era agora revista e sua disposição sofre uma mudança, da “neutralidade” que era a regra para o analista, confrontada agora pelo novo “lugar do analista real” como alguém real. 

 Assim como a transferência, a contratransferência também conta com dois modelos básicos, ou seja, a versão positiva e a negativa. Em sua forma positiva, o analista esta cuidando da “criança inconsciente” do paciente. Nesse modelo de contratransferência, o processo de projeção e introjeção estão fluindo de maneira harmônica. Já em sua forma negativa ou hostil, perturba a capacidade do analista e por isso necessita ser constantemente analisada e dissolvida. Como uma massa de elementos desordenados e incompreendidos do paciente despejadas no analista que se vê obrigado a digerir-los. A contratransferência acaba por ser algo que pode indicar algum impulso ou entrave na percepção analítica, que quando está dando manutenção ao seu funcionamento psíquico, tem maior chance de perceber quando ocorre e assim tentar elaborar.

“Uma pessoa que se tornou natural e livre da ação de impulsos instintuais reprimidos em sua relação com o médico, assim permanecerá em sua própria vida, após o médico haver-se retirado dela.” (Freud, 1917)


Wilfred Bion (1897 - 1979)
Wilfred Ruprecht Bion (1897 - 1979), importante psicanalista contemporâneo, nascido na Índia e naturalizado inglês, propôs a suspensão de três fatores para guiar o psicanalista em sua prática. Memória, desejo e compreensão. Sendo assim, , apegar-se em dados da memória sobre as sessões passadas são tão prejudiciais quanto para um bom desenvolvimento da dupla analítica. Da mesma maneira um desejo excessivo em relação ao paciente (que ele reconheça o esforço do analista, por exemplo) é um importante contaminador de um bom trabalho psicoterapêutico. Assim como a memória e o desejo, um analista que tenta a qualquer custo entender seu paciente pode não conseguir acolher a dor daquele que solicita ajuda. No entanto um analista inseguro deverá se apegar justamente nesses três recursos (memória, desejo e compreensão) para manter-se na dupla analítica.
Através desse pequeno ensaio fica claro que a conquista do título de psicoterapeuta não pode garantir a capacidade de realmente ser um bom psicoterapeuta, o que demandaria da proposta de dedicação da manutenção emocional na proposta de expansão do seu campo de consciência de si mesmo e com isso, das relações afetivas.

Referencias:
W. R. Bion, Second Thoughts, Rio de Janeiro, Imago, 1967
_____.Atenção e Interpretação, Rio de Janeiro, Imago, 1973
Freud, S. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas - Edição Standard Brasileira, IMAGO (1969-80)
Gide, A. Paul Guillaume. O tratado de Narciso in A volta do filho pródigo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1984.
Racker, H, Estudos sobre técnica psicanalítica, Artes medicas, Porto Alegre, 1986







Renato Dias Martino é psicoterapeuta e escritor.
Contato: 17 991910375 - prof.renatodiasmartino@gmail.com







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sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Elogio e Reconhecimento

Assim como a comida serve ao corpo físico, proponho aqui cogitarmos o conceito do reconhecimento, quanto a aquilo que nutre o eu, na dimensão do aparelho mental. Vínculos que resultam no reconhecimento trazem a verdade que é, em si, o alimento da alma. É dessa verdade que se retira o substrato da manutenção do funcionamento mental. Depende-se disso para o desempenho do pensar. O reconhecimento é o resultado da simbolização do objeto conhecido e a auto-estima parte daí. 
O conceito de símbolo começa a ser observado, com maior cuidado, a partir dos estudos de Melanie Klein (1882 - 1960), pensadora da psicanálise posterior a Freud. em sua obra DA IMPORTÂNCIA DA FORMAÇÃO DE SÍMBOLOS NO DESENVOLVIMENTO DO EGO, de 1930, Klein propõe que a capacidade do bebê em simbolizar o seio nutridor é o protótipo de vínculo que pendurará na vida emocional. Iniciam-se aí as tentativas de novas experiências que possam aprimorar essa capacidade de simbolizar. 
A partir desse vértice, cada experiência simbólica com a realidade deve habilitar o “eu” a viver a falta e, assim, sobreviver mesmo na falta.  Só depois da experiência da falta é que se pode viver o reconhecimento. Poderíamos sugerir um esquema onde: conhecemos, vivemos o afastamento do que se conheceu e só depois poderemos re-conhecer. 
Quando proponho o conceito de reconhecimento, isso não coincide de forma alguma com o ato de elogiar. Não proponho valorizar o conceito efêmero do elogio, que me parece tão pobre em nutrientes e tão inútil para funcionamento saudável da mente quanto a ação da crítica. Aquele que elogia, o faz por não ser capaz de reconhecer. Na realidade, o faz por se julgar incapaz de reconhecer em si mesmo aquilo que elogia no outro. Isso na melhor das hipóteses, pois quando a experiência é muito primitiva, o que temos é a crítica.
A crítica que, como vimos, parte da incapacidade daquele que critica, tem efeitos devastadores na qualidade dos vínculos. O crítico se fortalece criticando o outro. Isso porque despeja o peso de sua incapacidade no objeto da crítica. O elogio, por sua vez, é o falso reconhecimento. Um alimento que, apesar de ser extremamente prazeroso, é extremamente pobre em nutrientes da manutenção da auto-estima. O elogio é gerado por certa impressão superficial da realidade, bem distante de uma visão dedicada quanto à profundidade das pessoas e coisas, justamente onde se abre a dimensão do reconhecimento.
O que tento chamar aqui de reconhecimento está na ordem da capacidade de percepção da realidade dos fatos, independente do que se deseja que a realidade seja. Distante do enaltecimento do elogio, que se encontra na ordem do idealizado, muito afastado do real. 
O “re-conhecer” trata da experiência de conhecer novamente, mas agora contando com a imagem internalizada do objeto de reconhecimento. Necessitamos da opinião do outro quanto ao que somos. Isso existe naturalmente como necessidade de reconhecimento. Então, o ego carece disso, pois é daí que se nutre a auto-estima. Contudo, sendo o reconhecimento uma qualidade do funcionamento mental, deve partir de dentro, ou seja, deve emergir do mundo interno. 
Quero propor que só é capaz de reconhecer o outro aquele que aprendeu a reconhecer-se a si mesmo. No entanto, isso só se dará a partir da experiência, desse que hoje reconhece, em ter sido, por sua vez, um dia reconhecido. Ser reconhecido é perpassar o conhecimento do eu pela confirmação do outro. Então, para saber quem somos nós, necessitamos transcorrer  essa verdade através do olhar do outro. Uma verdade sobre o eu, que só o eu conhece, não pode ser chamada de verdade.






Capítulo do Livro - O Amar e o Pensar: Das Perspectivas dos Vínculos no Desenvolvimento da Capacidade Reflexiva





Prof. Renato Dias Martino 
renatodiasmartino@hotmail.com 
http://pensar-seasi-mesmo.blogspot.com.br

domingo, 15 de novembro de 2015

DO MEDO À ARROGÂNCIA

Segundo nos ensina a etimologia, a palavra arrogância tem em sua raiz o ato de arrogar-se. Certo movimento de atribuir a si mesmo direitos, poderes ou privilégios. Com isso o sujeito assume certa característica prepotente de menosprezo quanto ao outro. O vocábulo vem do latim arrogans, que quer dizer “o que exige”.
A exigência, por sua vez, é um ato que encontra-se num nível primitivo de imaturidade, no curso do desenvolvimento no exercício do pensar. Num ímpeto desesperado, exige-se aquilo que se deseja, sem considerar a própria realidade dos fatos. O bebê exige a presença da mãe, sem ser capaz de se importar com o bem estar desta que ora cuida dele. Aquele que exige, revela assim, a incapacidade de autonomia. Quando se exige algo, revela-se o fato de que, sem isto que esta sendo exigido, o sujeito se vê vulnerável. Bem como um bebê a chorar compulsivamente, exigindo a presença da mãe. Nesse nível do funcionamento mental, o agir deve ser a forma fundamental de lidar com a descarga desconfortável gerada pela insegurança.
Do modo como nos orienta a psicanálise, e também outras das mais nobres vertentes do pensamento humano comungam dessa mesma ideia, nascemos na mais densa ignorância, necessitando portanto, de apoio de qualidade para conseguirmos desenvolver a consciência de nossa natureza. 
A natureza humana é afetada constantemente pela péssima qualidade de cuidado emocional nas fases iniciais do desenvolvimento,  assim como é comprometida pela privação de ambientação saudável o bastante para propiciar sucesso no processo de maturação. 

"Se sentindo ameaçado cria um falso eu que parece superior, mas que na verdade não vai além das aparências. Um ego quando bem estruturado traz características de humildade, compaixão e capacidade para o acolhimento, diferente de um ego inflado que, sem substância ou conteúdo, arma-se sempre de arrogâncias e exclusivismos." Martino (2015)

Melanie Klein (1882 —1960)
Assim, quando se está exigindo, atesta-se o distanciamento que existe da realidade dos fatos, numa incapacidade de reconhecer o limite do outro, do qual se exige algo. Dessa maneira o desejo de um sobrepõe a realidade do outro, na expressão da voracidade. Melanie Klein (1882 —1960), em INVEJA E GRATIDÃO, de 1957 descreve a voracidade como sendo uma ânsia impetuosa que ignora o limite do outro no exclusivo objetivo de saciar o desejo. Melanie Klein relaciona a voracidade à inveja, que segundo a autora, amiúde andam juntas. Para Klein a voracidade é uma tentativa de controlar,  por meio da total possessão. "Isto é utilizado para neutralizar a inveja." Klein (1957). Incorporando o objeto ele passa a fazer parte do eu, logo, não há do que sentir inveja.
Artur Schopenhauer
( 1788 — 1860)
 
Um desejo sem a menor capacidade é gerador de inveja. O mesmo desejo do qual Artur Schopenhauer ( 1788 — 1860) em O MUNDO COMO VONTADE E REPRESENTAÇÃO, de 1818, já havia alertado quanto ao perigo. Vontade que se estendendo desde o desejo mais superficial de obter algo material, até a ânsia por viver. Seja como for, o convite para se perder num desejo estará sempre à espreita. Quando perdidos no desejo, a arrogância pode ser um conveniente recurso de manutenção desse estado.
Bem, a ignorância quando vivida num clima de insegurança, numa assustadora incerteza de sobrevivência, gera medo aterrorizante de aniquilamento.
Eros e Tânatos
O arrogante, na realidade é alguém com muito medo, que então, usa da hostilidade para tentar amedrontar o outro. Uma tentativa de aplacar esse temor que o aterroriza. O medo que é representante da pulsão de vida e de morte, na ilustração freudiana de Eros e Tânatos.
Sigmund Freud (1856 - 1939)
Sigmund Freud (1856 - 1939) em ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRAZER, de 1920, introduz o conceito de pulsão de morte em sua obra; como certa tendência, constituinte da natureza, que leva à segregação de tudo o que é vivo. A manifestação do instinto de autopreservação num desprendimento e no recolhimento do interesse no mundo externo.
No artigo SOBRE ARROGÂNCIA (1958), Wilfred Bion (1897 — 1979) propõe certo momento em que a arrogância pode emergir e instituindo com isso um clima caótico na qual paciente e analista conformam-se numa dupla frustrada.


Wilfred Bion (1897 — 1979)
“É possível ter uma indicação do significado que desejo conferir ao termo ‘arrogância’, se recorrermos à hipótese de que, na personalidade em que predominam os instintos de vida, o orgulho se converte em respeito a si mesmo; predominando os instintos de morte, o orgulho se transforma em arrogância.” (Bion, 1994/1985)

Sob a regência da pulsão de morte, erguem-se defesas em forma de arrogância para lidar com a ansiedade. Numa tentativa de reequilibrar o funcionamento que foi abalado pela insegurança, geradora de ansiedade. Para Bion, quando a tendência que nos retrai, num movimento de desligamento das relações, sobrepõe a disposição que nos abre para a vida e para os vínculos, o que seria autoestima então se converteria em arrogância. 
Através da hostilidade, arma-se o ataque que se articula como barreira e a violência convida à estupidez, num agir como se conhecesse a verdade, sem de fato conhecê-la. Quando as palavras se encontram vazias de experiência e são projetadas para ferir. O arrogante aferra-se à racionalidade dos fatos, descartando qualquer possibilidade de nova experiência. 


"O grande prejuízo nesse ponto da razão é que, quanto mais enriquecidos de saberes inquestionáveis, ainda mais empobrecidos das faculdades do pensar nos tornamos. Dessa maneira, quando em ocasião da crise e percebendo-se inseguro, alguma força só pode ser gerada da imposição desse saber inquestionável e isso, então, logo se manifesta como arrogância". Martino (2013)

A prática psicanalítica deve ser totalmente prejudicada quando inundada pela experiência da arrogância. A proposição de que 'se não for capaz de dizer com amor, não diga' é uma condição fundamental para a prática da psicanálise e não uma simples frase romântica. Ora, o que poderiamos esperar de certa experiência emocional onde existe a falha no amor? Um analista arrogante é um analista amedrontado dentro do ambiente da dupla, assim como a arrogância do paciente denuncia a insegurança vivida frente a dupla.


"Muitas vezes, pronunciamos “eu sei” antes mesmo do outro concluir o que quer dizer. É uma maneira de não dar muita atenção ou de ignorar alguém." Martino (2011)

No Congresso do IPA, em Edimburgo realizado em 1962, Bion apresentou a teoria que vinha desenvolvendo sobre sua releitura do mito de Édipo. Nessa releitura da alegoria iniciada em seu artigo SOBRE ARROGÂNCIA (1958), Bion adverte não sobre o crime sexual, mas a propósito da formas arrogante que Édipo conduz a busca pela verdade. 
Quando resolve o charada da Esfinge, Édipo acredita ter desatado Tebas de sua moléstias e isso é confirmado quando valeu à ele, como recompensa, a mão da rainha Jocasta e o trono real. No entanto, ele resolveu o 'complicado' da história no enigma, mas ficava sem solução aquilo que é 'complexo' e que está representado pelo mistério. O ponto complexo era mesmo a questão da verdade, da qual Édipo permanecia desconhecendo, ainda que agisse como se a conhecesse.
Agride Tirésias, o velho cego adivinho do qual a pouco havia enaltecido e colocado a verdade nas mãos. Tirésias, amedrontado pela possível reação de Édipo ao saber da verdade diz: "Fica certo de que a verdade, ainda que eu a encubra com meu silêncio, chegará a seu tempo". Assim sendo, mesmo que a ilusão seja prazerosa, a verdade, mesmo que dolorosa, prevalecerá.
Pois bem, as questões referentes ao complexo edípico são fundamentais e a psicanálise nos orientou sobre o fato de ser o Édipo, em sua elaboração, estruturante da personalidade. O Édipo é então, de onde as relações entre as personalidades estão sobremaneira subordinadas. A elaboração dessa ordem de experiências propicia o reconhecimento verdadeiro que permite o estabelecimento do respeito para com os vínculos afetivos. Assim a personalidade passa a assumir o caráter de estrutura nas relações que sendo de natureza afetiva e emocional, gera comunicação mais verdadeira entre as personalidades vinculadas.
Reconhecer o conflito edípico promove a capacidade do desapego, questão de fundamental importância quanto ao tema da arrogância. Sempre que apegados ao saber corremos o risco de nos seduzir pela arrogância. De sorte que a arrogância traz a sensação de força e poder à aquele que na realidade se sente inferiorizado. No entanto, a realidade não é definida pela vontade do humano.

BION, W. R. [1952]. Uma teoria sobre o pensar. In: Estudos psicanalíticos revisados – Second thoughts. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
KLEIN. M. Inveja e Gratidão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1957.
MARTINO, Renato Dias. Para Além da Clínica.Renato Dias Martino - 1. ed. São José do Rio Preto, São Paulo: Editora Inteligência 3, 2011. 
_____ . Primeiros passos rumo à psicanálise,  1. ed. São José do Rio Preto, SP : Vitrine Literária Editora, 2012.
 _____ . O amor e a expansão do pensar : das perspectivas dos vínculos no desenvolvimento da capacidade reflexiva , 1. ed. São José do Rio Preto, SP: Vitrine Literária Editora, 2013.
_____ . O Livro do Desapego,  1. ed. São José do Rio Preto, SP : Vitrine Literária Editora, 2015.
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação (III parte); Crítica da filosofia kantiana, Parerga e Paralipomena (capítulos V, VIII, XII, XIV), In: Coleção Os pensadores, trad. de Wolfgang Leo Maar e Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola, São Paulo, Nova Cultural, 1997.